FALO PARA INICIADOS E ENTENDIDOS

Se a proposta do autor é ser maldito, marginal, o leitor só deve ter uma exigência:  que seja logo, e o mais totalmente possível, porque há uma verdade infinita na idéia de que temos uma coisa integralmente... ou não temos nada. Paulo Augusto  neste ponto não faz por menos. Escreve poemas de entendido para entendido, ou para quem queira entender o que é ser isso. Poemas diretos, políticos, musicais, irônicos, eróticos, subversivos da moral dominante. Com essa linguagem desavergonhada, aberta, picante, acerta na mosca e se afasta (infelizmente) dos “enrustidos” que povoam  a literatura do sistema (extensão de sua própria indecisão entre a marginalidade e a carícia do status).

Paulo Augusto, em seu livro de estréia, Falo (sem editora), consegue ser a Madame Satã da literatura marginal, inventa um estatuto para o homossexualismo e penetra, em vários poemas, no cerne da questão homossexual, ser e não ser dessa população marginalizada. Marginalização, que como outras do porão dos valores dessa sociedade ocidental, cristã-moralista, dependente muito mais da forma do que do conteúdo. E a forma, compra-se, a moral na rua é a polícia, que é a outra marca registrada da questão: se há polícia, tudo é permitido, menos ser pobre.

O livro é dedicado à Madame Satã, símbolo maravilhoso do homossexual-machão, travesti em malandro ou mulher. E Paulo Augusto é feliz desde a ironia do título – jogando com dois sentidos da palavra – à “introdução” de gustavo coração e enfim ao conjunto de poemas, capazes de dimensionar sua capacidade poética. Alguns são obras-primas de ironia: “ser bicha é ser enquadrada / no inciso C / do parágrafo terceiro / do artigo 24 / da lei de segurança inter / nacional. / É ter medo à flôr da pele / é ter a língua ferida / a boca rubra / o beijo fácil / o amor saindo pelos poros. / Ser bicha é um estado de espírito / de choque, de sítio / de graça.”

E por ai vai o poema, chocando talvez menos do que imaginava o autor e definindo com graça essas personagens de piadas dos homens sérios, dos machões e das famílias em suas tardes de Domingo.

Inaceitável é citar Shakespeare: “então, o bufão começou a pilheriar a sério. E estava no seu elemento”,para compreender a importância do poeta frente à moral pública. Se fôssemos analisar o problema do homossexualismo, ou de qualquer grupo marginal, teríamos evidentimente que abrir um capítulo especial para a moral dominante. A quem serve essa moral, qual é sua orígem etc. No caso do homossexual, como do índio, está claro que os dois critérios moral-marginais atentam contra a noção de trabalho. A moral não é uma geração espontânea, serve apenas aos interesses do sistema. E na repressão ao homossexual e ao louco, ou na falta de seriedade com que se os trata, estão evidenciados pontos de apoio ao sistema. A linguagem consegue essa uniformização, também a serviço do poder. Dize-me o que é bom ou mau e eu definirei o mundo moral! Ou o negarei!

O sistema prega a seriedade. O marginal ri disso. O bobo do rei é o próprio rei. Em todo poder há um quê de ridículo, que é sua temporalidade. O bufão que pilheria a sério está no seu elemento e pode poder a cabeça. O artísta quando entende sua posição tem alternativa de contrariar ou de aderir ao sistema. Mas quando a pilheira, é marginal, porque subverte também a linguagem, subverte a forma dominante da linguagem, que é sua relação (séria) com a “realidade”. O lirismo seria o intermediário entre esses dois estilos. Mas só o humor tem a capacidade de distanciamento e projeção.  Os personagens do humor, nós mesmos, estamos rindo de nossos ridículos, que somos nós mesmos e assim pouco a pouco a realidade é envolvida. E discernida.

O primeiro poema do livro é uma obra-prima de ironia. A começar pelo título “Avant-première”, conta a história do primeiro amor – “Não foi medo que senti / quando você imenso – era a primeira vez que senti / me rasgou a blusa / inebriado e tonto. / Eu era virgem / como todo mundo foi um dia / mas isso não vem ao caso. / Fardos pesados  no canto do muro” – e termina com esses versos: “Mas – juntei minhas forças todas / e num relance lembrei-me / que mamãe sempre dizia: homem é para-mulher / e mulher é para-homem.” Para alguns, passará despercebido o paramulher, que, no autor, define o homossexualismo. Mais evidentes são as criticas ao primeiro amor, ao J. Gs da Vida, a toda essa sub-valorização da mulher, da virgindade etc, que escamoteiam uma visão clara do mundo.

Igualmente agressivo e de uma qualidade que o faz de situar-se em qualquer contexto é Ração Balanceada, que ataca sem piedade a moral vigente: “Pudibundo, aparatoso, / o homem togado, / convicto e obeso, / absolve o criminoso / de guerra – patriota - festejando sua indômita / e voraz bravura. / Tem pressa, tamborila, / a voz, rouca, tange: / - O próximo! / As grades rangem / rebanhos pastam, aguardam / a vez. / Vadios, prostitutas, / bichas loucas, / estelionatários / que um camburão despejou lá fora. / fedem. / O magistrado ri, balofo, / cego a balançar a saia. / protege a nação / da desregulada / e momentosa dissolução / dos costumes. / Grave e generoso, grasna: - o próximo! / O código bordeja a corja / - a sala cheia, barganha. / Como reza a lei, / a salvo a tradição fica ; de famílias quietas / a gerar mudanças / a desovar foras-da-lei / inéditos e rechonchudos.” Como se vê, não é só de sua turma que o autor sabe falar.

O grito apaixonado dos deserdados, dos marginais, se faz ouvir em cada página. E se não aparecer um crítico para lhe dar um lugar na nossa literatura é porque esses estetas ainda estão embriagados do tuberculoso lautrèamont, que teve a felicidade de sair do Uruguai, ou então é por esnobismo mesmo, porque Paulo Augusto sabe o que escreve. Falo é um berro, um uivo, que convém não ignorar. Assim como Madame Satã teve que esperar anos para ser reconhecido, pode ser que Paulo Augusto seja simplesmente rotulado de marginal, ou, o que pe a mesma coisa, de homossexual.

Do mesmo modo que Gregório de Matos é evitado pelos críticos de bom-tom, ou visto como um plagiador, ou qualquer outra desculpa para ignora-lo.

Se há os que não entende que aquele ideal de cultura acabou, se os cães de guarda do sistema – mais conhecidos como intelectuais – continuam a ladrar contra os que não rezam seu terço, a lapa não tem nada a ver com isso. Continua exportando seu poetas, seus entendidos, seu modo de dizer que a via está aí, nas ruas, para quem quiser viver.

SERGIO ESCOVEDO

Rio de Janeiro
27 de janeiro de 1977

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